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Taurus Caprus Catingueira

 

BACURAU: UMA DESMISTIFICAÇÃO DO AMOR

 

A vileza com a qual um agente da milícia mercenária agiu, disparando, à queima-roupa, sua arma de fogo em uma criança na ficção não é muito diferente do cotidiano dos Bacuraus espalhados pelas periferias do país e pelos núcleos dos territórios urbanos e suas particulares necropolíticas. Se alguém acredita que a violência ficcional é superior à violência real, a ponto de afirmar que “isso é muito cruel para acontecer com nosotros”, certamente acreditará que o menino assassinado no filme jamais seria assassinado na vida real daquela forma. Ainda bem que linguagem não é tudo! E ela, linguagem, só será quando absorvida pela ação dos corpos que a movimenta com o sentido concreto de aniquilar o/a outro/a. Esclareço que, quando me refiro à periferia, o faço a partir do entendimento hegemônico de que é o que órbita fora do núcleo. Ou seja, o que não é núcleo é periférico. O que está fora de mim fora vai estar do meu núcleo.

Pressupostos: Ainda hoje entendemos que o ser humano é o centro do universo. E temos espalhados, por entre fronteiras e limites territoriais e políticos, mais de 7 bilhões de centros em mobilidade constante e inconstante. Compreendo que, por essa lógica, podemos atestar a existência de inegáveis 7 bilhões de periferias também em movimento com a mesma dinâmica. Repito para não nos confundirmos: se o que está fora do centro é periférico e se cada ser humano é um núcleo, logo, o que está fora do (meu/nosso) corpo é periférico. Para quem assistiu ao filme Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, isso foi posto e apresentado de forma radical. Mesmo nos instantes nos quais o núcleo parecia mover-se em coletivo, o arbítrio do agente individual sobressaía ao espírito comunitário.

Em duas cenas pude atestar a beleza da linguagem cinematográfica como uma “homenagem” que a ficção prestou à realidade. A primeira foi a do casal de motociclista brasileiros que, como em uma espécie de prova de admissão para ingressar no grupo, sai, por entre as serras do povoado, com o objetivo de implantar um aparelho que cortaria o sinal de Internet. Sinal que mantém o povoado interconectado com o mundo. Como disse o professor: Bacurau tem gente espalhada pelo mundo. E o sinal além de facilitar a comunicação com as gentes do Bacurau mundo afora, indicava a existência da comunidade via satélite. Voltando ao casal de brasileiros. Certo de ter feito um bom trabalho, pois, a essa “proeza” somou-se o assassinato de duas pessoas do povoado, seguia para QG supremacista, por óbvio, esperando receber elogios dos estrangeiros. Ledo engano! Foram cruelmente assassinados após afirmarem que eram brancos e que aquele Brasil não era o deles.

A outra cena foi a do sexo no meio da babugem seridoense como um êxtase final movido pelo exitoso assassinato do casal que tentava fugir do povoado, assustado com o que estava acontecendo por aquelas bandas. Lugar onde as cenas de carnificina só eram comentadas quando chegadas pelas telas dos smartphones das personagens. A cena de perseguição ao casal que estava “fugindo” para a próprio morte foi um misto caricatural da guerra do golfo (1990/ 1991) com o jogos de playstation. É fácil ganhar um jogo quando são utilizadas armas que expõem a vulnerabilidade do alvo (drone). E foi assim, o chefe, de sua cabine, instruía os jogadores, quero dizer, assassinos, a se locomoverem em direção ao alvo sem se perderem na localização das atônitas presas. Fogo! Uma saraivada de chumbo esfarelou aqueles corpos como papel. E uma trepada celebrou a morte da política e a morte do sexo como afeto.

E assim foi o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Um dobrar e desdobrar de sentimentos que transcorriam por entre as veias e fora delas; por entre as vísceras e suas gordurosas paredes de futuros dejetos; por entre o cérebro e seus sedentários neurônios. Por entre o indivíduo e a sua multiplicidade de devires. Bacurau mexe com o sossego do espírito. Põe em dúvida o próprio valor da morte. Sim, da morte! Porque a vida em Bacurau tem outro valor que não ultrapassa o da paz. Quer dizer: se o/a seu/sua visitante não for com essa intencionalidade.

Ficha Técnica: Bacurau

  • Título Original: Bacurau

  • Duração: 132 minutos

  • Ano produção: 2019

  • Estreia: 29 de agosto de 2019

  • Distribuidora: Vitrine Filmes 

  • Dirigido por: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles

  • Orçamento:

  • Classificação: 16 anos 

  • Gênero: Fantasia, Drama

  • Países de Origem: Brasil

  • Elenco: Barbara Colen, Sônia Braga, Udo Kier

 

(fonte da ficha técnica: https://entreterse.com.br/ficha-tecnica-bacurau-2019-35321/)

Ítalo de Melo Ramalho

10/06/2023

 

CARTA AO QUERIDO ILHÉU!

 

Minha mulher e companheira, Christina, chegou com uma notícia alvissareira, mas também um tanto quanto intrigante. Disse: Amor, você sabe quem virá para Aracaju no final do ano (2019)? Silêncio. E completou: Brito-Semedo (assim, com hífen)! Eu respondi: Caramba! Manuel Brito-Semedo? Para quem não o conhece, o Professor Manuel Brito-Semedo, é o mago dos estudos caboverdianos, relacionados aos, para mim, principais aspectos que determinam a identidade de um povo: a arte − sobretudo a música − e a culinária. Mas o Professor, que é do campo da Antropologia, também se interessa por inúmeras outras formas de estudos culturais e como elas são estabelecidas por meio das relações que instituem entre si, seja a morte, e todo o mistério que a circunda; como as vestimentas e suas expressões estéticas e funcionais. E é aqui, na estética, que identifico em Brito a sua beleza mais viva: a seriedade por ele despendida, como acadêmico, em produzir conhecimento de alto valor cultural; e como apreciador dos movimentos humanos e culturais com a sensibilidade espiritual em querer compreender a lógica dos mundos.

Pois bem! Era com essa fera que iria me deparar pelas arenas sergipanas. Como iria dialogar com quem já frequentou a Biblioteca Nacional de Portugal?  Como em luta de boxe: estava nas cordas! Mas nada melhor que uma memória sempre prestes a nos socorrer. A minha ajudou-me em uma situação de pré-nocaute. Lembrei, imediatamente, de uma entrevista de José Saramago, na qual ele disse que quando vai à Biblioteca Nacional percebe que ainda falta muito para ser alcançado. E foi com a ajuda de Saramago que enfrentei o homem.

Brito chegou a Aracaju em um domingo. À noite ele veio a nossa residência, acompanhado dos Professores Fernando e Izaura. Conosco já estava a querida amiga Maria del Mar, professora da Universidade do Colorado nos EE.UU. Foi uma noite de muito som. Vozes se esbarravam à procura dos mais improváveis diálogos. Gente de todos os naipes. A nossa Acrópole (foi assim que Christina batizou a nossa morada!) estava em festa. Para alguns poderia até parecer balbúrdia. Alguns, apenas! Haja vista a inversão das situações protagonizadas por quem busca, a todo custo, ressignificar a contemporaneidade com involuções anteriores ao neolítico. Mas, para os que ali se encontravam, era um momento de confraternização, e não tínhamos outros motivos para não seguirmos em festa. Pois a danada só estava começando!

No dia seguinte Brito foi o convidado da Aperipê FM (emissora pública ligada ao governo do Estado de Sergipe), na qual concedeu uma bela entrevista. E o desdobramento dos dias seguintes foi com falas na Universidade Federal de Sergipe (UFS), passeios pelo interior do Estado, visitas aos pontos que representam a sergipanidade das gentes daqui, etc. Mas ainda faltava o meu encontro pessoal e este veio no domingo seguinte.

Christina teve que se ausentar já no fim da estadia do Professor Brito-Semedo em Aracaju, pois tinha um compromisso já firmado anteriormente com os/as queridos/as Amigos/as que formam o corpo docente do curso de Letras de Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). O meu encontro que se aproximava, mais parecia com a reprodução de um conto medonho de Guimarães Rosa “A hora e a vez de Ítalo de Melo Ramalho” do que com uma situação de amizade. E como a dramaticidade é uma arte peculiar a qualquer iniciado em Shakespeare, peço vênias ao bardo inglês, para, aqui, desferir o meu rosário aperreios.

Brito já tinha quebrado todas as amarras que ainda me prendiam. Já me chamava de Moreno (forma carinhosa com que Christina me chama) desde o nosso primeiro encontro em Cabo Verde e nas conversas virtuais com Chris. Sempre me enviando um abraço. Mas convenhamos: os primeiros contatos são fugazes e até mesmo superficiais. No entanto, quando é do interesse das partes, a possibilidade de um estreitamento de laços fica a cargo de um convite para um café ou de um “até amanhã!”. E foi assim que se deu.

Fiquei acertado com ele no domingo que, na segunda-feira, após a sua comunicação dirigida ao pessoal do curso das Relações Internacionais, eu passaria na UFS e o levaria para almoçar e depois, quem sabe, estenderíamos por algum outro sítio a que ele ainda não tivesse sido apresentado ou que lhe tivesse despertado a curiosidade de conhecer.

Nada ocorreu como o que, empiricamente, havíamos pensado. Após o término da fala, fomos convidados pelos Professores Geraldo e Tiago, das Relações Internacionais, para almoçarmos em um restaurante de comida baiana nas redondezas da UFS. Aceitamos o convite e fomos para a bonança da culinária baiana. Comida de primeiríssima qualidade. Nós nos fartamos! Depois o deixei no hotel e acertei que à noite passaria para levá-lo ao Mangará, restaurante de comida típica nordestina para comermos algumas delícias da região.

No dia seguinte foi o dia da farra popular. Fomos ao mercadão! Jeito carinhoso com que chamamos o nosso Mercado Central de Aracaju. O propósito era percorrer todas as seções do complexo centro comercial de economia popular da capital. Das bugigangas para casa aos brinquedos para crianças; dos cereais e grãos aos peixes e frutas. Brito, curioso que é, informava o que já conhecia e queria saber o que não era do seu conhecimento. Saliento que pouquíssimas coisas ele desconhecia. E assim seguimos até o saboroso caldo de cana com pastel. Ali eu e Brito éramos unha e carne. Quem o fotografou comendo pastel e tomando o caldo fui eu. Fazíamos críticas às caricaturas das oficialidades dos nossos países, e nos confidenciávamos sobre nós e sobre os nossos. Naquele instante, a minha preocupação em parecer o que não era, dentre tantos que sou, já havia descido a correnteza da vida. Brito-Semedo, como intelectual que é, já me deixara completamente a vontade para contar as minhas vivências e “as minhas mentiras”. Afinal, a mentira é o enfeite que o real não proporciona. É o rococó barroco de cada anjo esculpido por Aleijadinho.

Com Brito, eu aprendi que o papel do intelectual vai muito além da universidade. Ele move os pés na tradição − sem ser conservador ou antidinâmico − e mira o olhar no povo – sem ser panfletário e xenófobo. Grato, querido amigo. Sua estadia por aqui deixou a mim e a minha esposa (sua querida amiga, Christina) muito felizes. E, para finalizar, informo que já começamos a campanha que visa ao seu retorno às terras sergipanas. Porém, para isso, é preciso passar pela Bahia! Abraçaço, camarada!

 

Ítalo de Melo Ramalho

05.01.2020

Com Brito 3.jpg
Com Brito na Passarela do Caranguejo

CRÔNICA DO DISCURSO INÚTIL

 

A situação de insegurança emocional e institucional no Brasil é tão infame, que termino por desconhecer aquele/a amigo/a que me acompanha desde os meus primeiros momentos; como também aqueles/as que estão presentes nos meus mais recentes passos na vida. Quando observo o discurso político no universo virtual em contraste com o que é pregado nos corredores da cidade, não tenho outro questionamento a não ser: Como pode isso...? Vale salientar que a cada segundo em que o mundo caminha, fica mais difícil esticar uma conversa, por menor que seja, nos corredores, nas travessas, nos cafés, nas filas. Chego à conclusão de que provavelmente os botecos serão os únicos redutos de resistência para um simplório diálogo em brevíssimo futuro. Simplório sim! Já que um bom diálogo será impossível de se constituir fora da esfera retangular das telas.

Antes, eu ficava surpreso com as demonstrações da sensatez protoanalítica de alguns. Hoje, eu fico estarrecido com o altíssimo grau das análises do atual cenário político, que não vão além da esfera zodiacal. Para o bem de todos e a graça da torcida do Confiança. Impressionantemente, contribuem para apuração desse movimento de análise política do qual citei: professores/as, que não saem do topo do muro e que mansamente tentam se equilibrar entre o vazio da cerca elétrica e o abismo mambembe da intelectualidade inorgânica; advogados/as, com requintes de cientistas políticos, que seriam mais que premiados (como a classe gosta!) caso analisassem os fatos sem recorrer para o além das normas; médicos/as, que empunham o bisturi com uma mão e, com a outra, rasgam o código de ética da categoria, transformando em patologia o que não é doença; policiais, que repetem o mantra do “bandido bom é bandido morto”, e que, quando são contrariados, despem-se do ofício da segurança pública e fundem ideologia e chumbo no mesmo bico de cano. São esses mesmos profissionais que negociam com a indústria dos planos de saúde e farmacêutica; que recorrem ─ via recursos auriculares tão silenciosos quanto os liquidificadores ─ a inescrupulosos despachos e decisões fora dos autos, já que, nessa prática do pé do ouvido, a divisão social do capital é moralmente aceitável; os/as queridos/as mestres que, depois de estabilizados, esquecem (sobretudo os que estão com menos de 50 anos) que nos seus períodos de academia o enredo não foi como o que foi vivido na primeira década do século XXI; tendo alguns deles/delas como professores/as institucionalizados na rede pública de educação.

O Brasil, brasileiros/as, não sangra pelo excesso de Estado como reza o liberalismo tupiniquim; que quando é confrontado com a Meca do tal sistema, nosso Estado é burocraticamente minúsculo. O Brasil não sangra apenas por causa da corrupção na Petrobras. A empresa que, depois de toda a campanha contrária, é considerada a mais rentável do mundo quando se referem a qualidade e a quantidade de óleo existente em nossa costa; e que pode e deve ser o nosso passaporte para implantação do Estado de Democrático de Direito por meio da inclusão e da justiça social. O Brasil não sangra pelo fato de termos o pior conjunto ficcional de empresas midiáticas de todos os tempos. Como não é pelo complexo de vira-latas que sangramos; como não é pelo jeitinho brasileiro; como não é pela passividade, pois de passivo nada temos e isso se constata quando em matéria criminal a violência doméstica e o assassinato de jovens negros periféricos são apresentados em estatísticas.

O Brasil sangra aos borbotões quando nos sentimos inertes diante do quadro seletivo da política nacional estruturalmente institucionalizada para tutelar uns poucos e abandonar outros muito. Utilizarei, como exemplo, a política de cotas raciais nas universidades públicas que balançou as estruturas da sociedade brasileira em discursos favoráveis e contrários a implantação dessas ações afirmativas. Esse, para mim, é o mais substancial motivo para estarmos enfiados nesse instante histórico de mediocridade institucional. Pois a nossa estrutura, enquanto Estado-Nação, tem seus fundamentos principiológicos erguidos sob a ótica da racionalidade branca, como canta Jessé Souza.

Esse tipo de inércia é experienciada em outros campos da sociedade. As estruturas precisam ser sociabilizadas. E não há outra maneira que não seja com a presença do Estado atuando como mediador e ator em favor dos que chamamos de hipossuficientes. No entanto, não significa que a presença do Estado nessas questões, autoriza o ativismo judicial e a judicialização da política, para interferirem nas decisões de um poder republicano em outro. Longe disso!

Só ao fim desta análise (que pode parecer, mas que não é zodiacal) é que recordo que estava falando dos/das amigos/as que estão mergulhados neste mar de polaridade e aparente paridade partidárias; e que eles/elas discutiam sobre os votos em primeiro e segundo turnos e na utilidade dos mesmos nesse pleito eleitoral. E que toda a discussão é feita na virtualidade, o mais distante da praça. Visto que o ambiente público ou privado não confere segurança suficiente para os debatedores. Pois digo aos/as indecisos/as que, recortando o mais recente período da história brasileira e observando a conjuntura que por ora se apresenta, não penso em votar em outro partido que não seja o Partido dos Trabalhadores. Não é apenas pela ameaça fascista (inclusive o fascismo togado!) que lambe as botas ou sapatilhas da república, mas, sim, pelas políticas públicas que foram implementadas e que alcançaram, exitosamente, todos os tecidos da sociedade.

Como dizia Castro Alves: A praça é do povo como o céu é do condor. Pois que então abandonemos o frio gélido das telas e das teias da moralidade; e passemos a habitar as praças e os céus da realidade inóspita e hostil ao sonho libertário.

E que seja já!

Ítalo de Melo Ramalho

17.IX.2018

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