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PELE D'ÁGUA

Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde. O sol d’África umedece meu corpo, e uma nova pele me reveste: pele d’água. Vestida por ela, não me reconheço. Meus olhos veem paisagens inéditas. Os ouvidos escutam mornas, coladeiras, funanás, zuquis[1]... As narinas recebem olores distintos. Minhas pernas me levam por onde não sei. Inauguro beijos e abraços, gentes que chegam e que se vão, sem que eu saiba o limite de reencontros possíveis. À minha volta, um espetáculo de cores, movimentos e lições a serem compreendidas.

 

Pelas ruas caminham meninas e mulheres com vasilhas e baldes na cabeça. Contudo, não há resquício de incômodo ou sacrifício. Ao contrário, suas figuras deslizam elegantes, altivas, como se a água ou as frutas que carregam fossem coroas que as dignificassem. Moças bonitas ziguezagueiam pelas calçadas com pernas quilométricas balançando os quadris e deixando entrever a dança que nelas habita. São belas em seus olhares pontiagudos. Crianças de mil caras correm, brincam, buscam as mãos das mães, sentam-se, com elas, no chão para vender roupas, sapatos, frutas, bebidas e apetrechos dos mais variados. Homens e rapazes se confundem na pele jovem que engana a idade. Em meio às mulheres e às crianças, eles parecem compor um mundo à parte, mas um mundo sujeito à estética do feminino. Idosos e idosas passam camuflados pela necessidade de perpetuarem a busca pela sobrevivência. As mesas dos bares estão sempre cheias. De sede, de conversa, de gestos. Igualmente cheias, porque apinhadas de produtos de toda natureza, estão as lojas estreitas e escuras. Cada uma é um universo completo de acessórios para viver. E o sol, absoluto, parece estar sempre ao meio-dia, até que decide entardecer.

Surpreendentemente, o suor que me custa viver tudo isso não escorre lento pela geografia dos braços, pescoço e rosto, mas se entranha nas próprias águas que gera. É um suor diferente que, por se amalgamar à pele, provoca a forte sensação de, mais do que Sol, haver água por todos os lados. Eu, como as ilhas, sou um pequeno pedaço de terra totalmente cercado de águas.

Cidade da Praia. Santiago. Cabo Verde. A pele d’água me transformou geograficamente. Deixei de ser a mulher-continente para ser a mulher-ilha. E que diferença há nessa nova geografia! Aqui o mar nos olha visceralmente. Somos parte dele, parte de sua generosidade, já que nada lhe custaria roubar-nos terra e vida. Antes, minha memória era de infinitas costas que pareciam desenhar uma linha de forças hercúleas igualmente poderosas: terra e mar. Aqui não. Aqui a fragilidade da terra é tão visível e marcante que a única forma de fugir dessa onipotência marítima é ser mar também. E talvez seja este o mistério da pele d’água. Talvez seja por isso que o suor, embebido de maresia, não escorra alheio à sucção dos poros, mas se ofereça a eles desejando ser carne, carne d’água, carne d’ilha, carne badio-cabo-verdiana.

Praia, 06/10/10

O termo “pele d’água” já está na minha escrita há algum tempo. Mais precisamente desde 2010, quando eu escrevi a crônica “Pele d’água” para falar sobre minha experiência afetiva e estética de conhecer a cidade da Praia, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde. A crônica foi publicada em alguns lugares e depois passou a integrar o e-book Catimbó, que reúne 100 crônicas de minha autoria. Apresento abaixo a capa do e-book e a crônica. Quem quiser acessar o e-book na íntegra, basta visitar https://www.ramalhochris.com/livros-books-livres-libros e clicar na imagem do livro. A referência da crônica é: RAMALHO, Christina. Pele d’agua. In: _______. Catimbó. crônicas reunidas. Natal: LucGraf Virtual, 2018, p. 213-214.

Christina Ramalho

16/01/2021

 

 

[1] Ritmos e danças típicas do país.

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