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PANDEMIA

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27 de abril

panis et pandemia

são ingredientes básicos

da cesta

 

quando faltam

o chumbo supre

a fome estatística

da vala

Ítalo de Melo Ramalho (2021, p. 37)

italodemeloramalho@gmail.com

Texto da orelha de Um dia para cada abril ou a função sócio-política do afeto,

de Ítalo de Melo Ramalho (Aracaju: Criação Editora, 2021)

Quando um poeta se encontra com o tempo, todos os calendários se rendem à atemporalidade da poesia, e mesmo que os versos tenham a data exata guardada na cronologia das rimas ou nos espaços trilhados pelo branco do papel, mais forte se faz a lírica magia de captar no tempo o que nele é permanência, porque a poesia toca o humano e o desumano gravados nos ponteiros da vida. Um dia para cada abril ou a função sócio-política do afeto é um gesto vivo de descortinar ante nossos olhos todos os dias de abril de 2020, trazer outros trinta para provocar a sensação do espelho e, no final, revelar-se, todo o livro, um “corpo de cobra” em plena ação de “locomover” o “invisível/da caça”, tal como nos diz o primeiro poema. Trinta dias e seus outros trinta diretamente conectados com a trágica experiência de um abril cravado na memória da humanidade pela antibeleza da dor, mas que, na poesia de Ítalo, são também “investimento/fixo” “no fundo ficto/da justiça de deus”, como avisa o último poema. Ao vivermos “um dia para cada abril” e “a função sócio-política do afeto”, não revisitamos apenas os contornos sociais, políticos, filosóficos e plásticos do humano e os desenhos “fakesumanos” do egoísmo, da pandemia, do “necroliberalismo”, das bancadas “do boi”, “da bala” e “da bíblia”, porque o poeta, “útero do mundo/vicío vivo” que é, sabe fecundar as palavras com a atemporalidade das coisas permanentes, sabe reconhecer o que, na miséria humana, é herança maldita mas não sentença, porque, através da “verboração”, do “verbocanção” ou da “versificanção”, podemos ser palco e plateia da superação de todos os tempos de maldição, inclusive este que nos toca com sua pele de “putrefações”. Por tudo isso, ao fazer de  “panis et pandemia” os “ingredientes básicos” da “cesta” de sua palavra, Ítalo, na verdade, abre seus “braços bailarinos” para nos dizer que somos infinitamente maiores que todas as cronologias quando entendemos a poesia das horas. 


Christina Ramalho

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